quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Cena comum

Cinco da manhã... É acordado a tiros, levanta assustado. Percebe furos na janela."As balas perdidas querendo encontrar alguém", Pensa. Toma o café, às cinco e meia toca o despertador. "Meia hora de sono perdida". O coração um pouco acelerado e uma pequena preocupação ainda no ar. Se arruma, roupa social, emprego de auxiliar administrativo numa empresa qualquer, estágio conseguido com muito custo. Conforta a mãe, que acordou assustada com os tiros de meia hora atrás e agora reza o terço, pra ver se consegue voltar a dormir. "Tchau, mãe, to indo pro trabalho... Não fica assustada não, tudo já passou". A mãe não esconde a preocupação mas deixa o filho ir. Dezenove anos, trabalhador, nunca deixou de estudar. Economiza uma grana pra fazer faculdade. Às seis pega o ônibus lotado em direção ao centro". Anda, seu filho da puta, lesma do caralho!" Ouve os gritos dos passageiros estressados, xingando o motorista que nada pode fazer a respeito do trânsito da manhã. Talvez chegue atrasado e ganhe uma bronca do chefe, que não liga para o que acontece com seus funcionários.
Às oito chega no trabalho. Conseguiu chegar a tempo, talvez um milagre. Trabalha. Horário de almoço. Almoça. Volta e trabalha mais. Termina seu horário, arruma as coisas pra sair. Devolta ao ônibus lotado sentido bairro. Por causa de um acidente, fica no ônibus por mais tempo que o esperado, ouvindo mais gritos de mais passageiros. "Anda seu merda, vou perder a novela! Vai filho da puta desgraçado, hoje é a final da Fazenda! Porra, vou perder o paredão triplo no Big Brother! Acorda pra vida, moleza!" Pensa que o mundo vai acabar com tanta gente assim. Às nove da noite desce do ônibus e começa a andar, já chegando em casa. Ouve tiros. Tiros próximos. Muito próximos. Polícia invadindo, descendo o pau em quem quiser. Bombas de gás, tiros de borracha, escopetas, pistolas, gente chorando, gente sofrendo. A milícia responde com mais tiros. Balas perdidas procurando alguém. Medo. Finalmente, sono. É adormecido a tiros. A bala encontra a pessoa errada.
Dezenove anos. Nunca deixou de estudar. Economizava uma grana pra fazer faculdade. Alguns dias depois, vira notícia em jornal sensacionalista.
Corpo velado num cemitério qualquer. Choro. Lágrimas. Palmas em homenagem. A mãe reza. Nunca deixa de rezar o terço para o filho.
E naquele dia triste, o dia em que adormeceu para sempre, um dia como todos os outros, de ônibus lotado, gritos, tiros e desgraça, felizmente, todos conseguiram chegar a tempo de assistir a novela, a final da Fazenda e o paredão triplo do Big Brother.

Elvio Fernandes - 10/02/2010

Um comentário:

  1. Triste realidade, hoje um corpo estendido ao chão é só mais um corpo. Ninguém pensa na familai que perdeu um parente, nem na filha que perdeu o pai ou na mãe que perdeu o filho. A "realidade" fictícia dos programas de tv são mais bem vindas.
    Já não importa se alguém no mundo sofre, desde que eu esteja bem.
    E assim caminha a humanidade. Cada um olhando pro seu umbigo, pensando apenas em si mesmo.
    Cada um acho que o mundo gira ao torno de si, mas todos esquecem que nós giramos com o mundo.
    É triste ver que a violência toma um espaço cada vez maior e a sociedade só pensa: E daí, não vai acontecer comigo.

    Enfim, ótimo texto [Parabéns, no entanto uma péssima realidade que, de fato, precisa ser descrita!

    Grande Bjo =*

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